
O futebol explica o regime da Alemanha Soviética
Mais de 26 anos depois da queda do maior símbolo da Guerra Fria (1945-1989), a Alemanha ainda sente as consequências do Muro de Berlim, mas no âmbito futebolístico. O mapa do país germânico mostra que os clubes que hoje fazem sucesso, e se encontram na elite do esporte por lá e em toda a Europa, ficaram do lado ocidental da muralha, sob o regime capitalista. Já os clubes da extinta Oberliga, campeonato da Alemanha Oriental, sofreram com o monopólio dos soviéticos, vivendo praticamente uma extensão da cortina de ferro, sendo Berlim oriental assumidamente uma cidade satélite de Moscou.
As diferenças não são mínimas ou irrelevantes. No momento, entre os 18 times que figuram a primeira divisão da Alemanha, a Bundesliga, apenas um deles teve sua história construída ou relacionada com o extinto lado soviético alemão, o RB Leipzig, que foi repaginado e assumiu no século XXI um caráter comum ao chamado futebol moderno e completamente diferente da política do antigo Kremlin.
Antes de conhecermos um pouco mais sobre os moldes do futebol no governo soviético e ver o reflexo da divisão da Alemanha no futebol atual, é necessário relembrar o que foi e como surgiu o Muro de Berlim.


A origem da muralha de Berlim pode sim ser encontrada ao final da 2° GM. Com a derrota da Alemanha nazista, os aliados dividiram a capital em quatro setores: um pertencente aos franceses, outro aos ingleses, outro aos americanos e outro aos soviéticos. Os três primeiros adotaram o regime de governo capitalista, enquanto a URSS adotou o regime socialista em seu território. Essa divisão, antes imaginária, deu origem a dois países: a Alemanha Ocidental (RFA – República Federal da Alemanha) e Alemanha Oriental (RDA – República Democrática da Alemanha).
O bloqueio da Alemanha soviética (oriental) aos capitalistas (ocidentais), deu-se, inicialmente, a insatisfação de Joseph Stalin, então líder comunista da URSS, pelo fato dos países socialistas não terem sido contemplados pelo Plano Marshall, criado pelo governo americano que visava a reconstrução dos países europeus atingidos pela 2° GM.
O MURO
O real estopim para o levante da muralha aconteceu no início da década de 1960, quando o número de cidadãos que migraram para o lado ocidental, provenientes do lado oriental, estourou de vez. Na busca da extinção de qualquer contato com o mundo do capital, o secretário geral do partido comunista da RDA, Walter Ulbricht, e o novo líder da União Sovética, Nikita Kruschev, tiveram a ideia de construir aquele que seria o símbolo que mancharia para sempre os regimes de esquerda na Europa: o Muro de Berlim.
Durante a existência do Muro, centenas de pessoas foram mortas por tentarem passar pela barreira de concreto em busca de uma vida nova no lado capitalista, todo eles alvejados por armas dos seguranças orientais.
O colapso veio com o fim da URSS e seus satélites na Europa, em 1989. O dia 9 de Novembro é tido até hoje como uma das memórias mais felizes da história alemã, quando o país pôde de uma vez por todas se reunificar e buscar um futuro melhor. A queda do Muro também representou o fim da Guerra Fria e da bipolarização mundial em torno de ideais políticos.
O MODO SOVIÉTICO DE GERENCIAR O FUTEBOL
Copa do Mundo de 1974: Alemanha Oriental 1x0 Alemanha Ocidental
De início, a porção de território cedida aos soviéticos em Berlim foi ocupada por militares durante quatro anos, até que o país ganhou autonomia da URSS, se tornando mais um satélite de Moscou na Europa. Dessa maneira, as diretrizes da nação socialista não foram seguidas somente nos campos da economia e da política, mas também no futebol.
Ainda em 1920 na União Soviética, Lênin enxergou o esporte bretão como uma ferramenta de forte influência nas camadas populares, como os trabalhadores urbanos e os jovens, que eram de interesse do governo. O Estado, portanto, se apossou do futebol, e a seleção russa da época era apenas um “meio diplomático”, enquanto os clubes sofriam intervenções governamentais.
O futebol se tornou uma ferramenta a mais para o governo da RDA afastar da população os resquícios do nazismo e do capitalismo, por isso a administração dos clubes política Federal. Seguindo o modelo soviético, a seleção da Alemanha Oriental fez a sua estreia em 1952, mas como um meio de diplomacia, levando a bandeira da nova nação para toda a Europa. Internamente, entretanto, as coisas eram mais delicadas. O governo da RDA não ousou dissolver, realocar ou ligar órgãos estatais aos clubes (não incialmente). Dessa maneira eram criadas as Associações Desportivas, ou “BSG's”, que recebiam remessas de recursos públicos.
O primeiro campeonato nacional da Alemanha Oriental aconteceu na temporada de 1949/50, e a força do Estado já foi muito clara naquele momento. A chamada Oberliga contou com clubes que estavam sendo reorganizados pelo Governo, que determinava as regras. O Dresdner, da cidade de Dresden e que mudou de nome para Friedrichstadt a fim de deixar para trás o seu passado ligado ao nazismo, fez um confronto direto diante do Norch Zwickau, time dos trabalhadores, pelo título da Liga na rodada final. O clube do proletariado foi muito beneficiado pela arbitragem, e acabou ganhando a peleja por 5×1. Revoltados, torcedores invadiram o gramado e agrediram atletas do Zwickau. Diante de tal atitude, o governo da RDA classificou o Friedrichstadt (ou Dresdner) como “muito burguês” e simplesmente dissolveu o clube, redistribuindo os jogadores.

Times da RDA e seus respectivos setores
Em 1950, a legislação elevou a organização esportiva a níveis produção, por isso a temporada de 1950/51 é repleta de “equipes industriais”. Isso também foi feito na URSS, e acabou por criar clubes que até hoje são reconhecidos na Europa, como o CSKA (time do exército), o Lokomotiv (time dos ferroviários), Dynamo Moscou (time do Ministério do Interior) e das mais diversas indústrias.
Com o fim do Dresdner, outro clube que ganhou força numa das maiores cidades do país foi o Volkspolizei Dresden, formado por jogadores de clubes ligados a polícia popular. O time acabou sendo rebatizado com o nome de Dynamo Dresden, e foi ligado à Stasi, polícia secreta agressiva e repressiva do governo. Além disso, o agora Dynamo não era mais uma BSG como os seus adversários, e sim uma SG, tendo ligações maiores com entidades populares.
O MUNDIAL DE 54' E A DECADÊNCIA DA OBERLIGA
Mesmo sem repetir o sucesso do passado, o Dynamo Dresden ainda conta com uma legião de fãs
Após a conquista do mundo pela Alemanha Ocidental, no ano de 1954, os orientais se viram na necessidade de mudar a Oberliga. Berlim Oriental ganhou mais uma força: o Dynamo Dresden acabou por deixar a sua cidade e assumir o nome da capital alemã, ficando ainda mais próxima do controle da Stasi. O agora Dynamo de Berlim representou a primeira de muitas mudanças no mapa do futebol da RDA.
Outros clubes foram transferidos de cidade, para a revolta de seus torcedores. O futebol passou a ser centralizado pelo regime, reduzindo a importância das BSG's e dando autonomia aos órgãos de governo assumir o controle das equipes, mesmo com os industriais ainda no ramo futebolístico. A formação desportiva em si já não existia.
A intervenção estatal já era insuportável. O time queridinho do governo era o Dynamo de Berlim, ligado a Stasi, chegando a ser decacampeão da Alemanha Oriental, no período de 1979-1988. Os resultados eram manipulados, e muitos entre técnicos, jogadores e árbitros, não eram nada mais do que informantes da polícia secreta da RDA.
Tantas eram as interferências que uma tragédia marcou época, e fez com que houvesse um levante. O meia Lutz Eigendorf, do mesmo Dynamo de Berlim, deixou o clube para se juntar ao ocidental Kaiserslautern, durante um jogo além do Muro. Após três anos, Lutz, então atleta do Eintracht Braunschweig, foi assassinado num suposto acidente de carro criado pela Stasi, que teve sua participação comprovada no homicídio anos depois.
Por episódios como este e pelo próprio futebol, a Oberliga já não interessava aos alemães orientais. As manipulações descaradas do Estado faziam com que o time mais vitorioso, o Dynamo de Berlim, tivesse uma média de público de apenas 5 mil torcedores, considerada muito baixa, e nem sequer a própria torcida apoiava mais o time. A Stasi permaneceu por trás do Dynamo até o final, principalmente sob a figura de Erich Mielke, grande cabeça da polícia secreta.

Erich Mielke, cabeça da Stasi por trás do controle do futebol na RDA
Mielke tinha a simples estratégia de dar benefícios aos árbitros que favorecessem o seu time berlinense, indicando os mesmos para jogos oficiais da UEFA em outros países. O Dynamo de Berlim, com isso, teve muitos pênaltis a seu favor, muitos gols sofridos anulados por impedimento, e até mesmo craques de outros clubes eram suspensos para não enfrentarem o Dynamo na rodada seguinte.
Apesar do sucesso doméstico, o clube acumulava fracassos nos campos internacionais. Na Copa dos Campeões, foi eliminado para times até então de pouca tradição, como o Áustria Viena, Brondby e Bordeaux, sofrendo o maior vexame diante do Weder Bremen, em 1988/89, quando chegou a vencer a primeira mão em Berlim Oriental por 3×0, mas no jogo de volta acabou perdendo por 5×0.
Além do desinteresse dos torcedores e dos fracassos internacionais, a pressão sobre Mielke aumentava. A Federação de Futebol da Alemanha Oriental chegou a emitir um documento acusando os pagamentos ilegais, os privilégios sociais e muitas outras atitudes promovidas pelos comandantes da Stasi como motivos para o desenvolvimento do esporte na RDA ter sido prejudicado. O hooliganismo também chegou à Alemanha, e isso contribuiu para a perda de controle de Mielke e cia. sobre o futebol alemão oriental. A situação tornou-se insustentável, e o reflexo do fim dos poderes da Stasi também foram fundamentais para a queda do Muro de Berlim.

Mapa com os times da última temporada da Oberliga
26 ANOS DEPOIS, O MURO AINDA EXISTE
A transição da política socialista para a capitalista não foi nada fácil para os alemães orientais. Apesar de crescimentos consideráveis nos últimos anos, a região que corresponde a extinta RDA é a de menor participação no PIB alemão, numa defasagem enorme em relação a outros territórios do antigo lado ocidental. As taxas de desemprego por lá são as mais altas do país (chegando a casa dos 15%), e até mesmo as aposentadorias são menores.
Toda essa dificuldade também foi sentida – e muito – pelos clubes de futebol. A maioria daqueles que figuravam o lado oriental recebiam apoio financeiro do Governo, e o fim da Alemanha comunista também foi a quebra de inúmeras agremiações esportivas. Crises monetárias, baixa oferta de patrocínio, pouca competitividade das equipes, entre tantas outras problemáticas, fizeram os times da morta Oberliga “sumirem do mapa” do futebol germânico. Os estádios vazios e as novas gerações de torcedores cada vez mais distantes das equipes, fizeram parte de um reflexo claro e esperado.

Assim que a Oberliga foi aberta ao ocidente, os times da Alemanha capitalista logo foram à caça dos principais atletas da liga de futebol da RDA. Clubes como o Borussia Dortmund e o Bayer Leverkusen viajaram até Viena, onde a seleção da Alemanha Oriental enfrentaria a Áustria pelas eliminatórias da Copa de 1990, para convencer os jogadores a irem para a Bundesliga. Os austríacos venceram por 3×0, justamente pelo fato do elenco estar com a cabeça longe da busca por uma vaga no mundial seguinte.
Com a unificação alemã no final daquele ano, a Oberliga foi incorporada a Bundesliga, mas sem nenhuma paridade. Dos 14 clubes da RDA, dois (os últimos campeões), foram para a primeira divisão, o Hansa Rostock e o Dynamo Dresden: o primeiro acabou por ser rebaixado logo na temporada inicial; já o segundo persistiu até a temporada de 1994/95, sempre brigando contra a degola. As outras equipes acabaram em divisões inferiores. Além do Hansa e do Dresden, o Energie Cottbus ainda jogou a primeira divisão.
A falta de dinheiro causou por tabela a queda vertiginosa de investimento nas categorias de base. O governo soviético via como fundamental a formação de novos atletas, principalmente nos clubes de maior investimento. A última boa safra de jogadores provenientes da RDA é representada por nomes como Robert Enke, Tim Borowski e Michael Ballack.
Na atual seleção, tomando como exemplo os atletas que disputaram o mundial de 2014, dos 30 pré-convocados, apenas dois são naturais da Alemanha Oriental: Toni Kroos e Marcel Schmelzer. Nenhum foi revelado por clubes do extinto oriente alemão, sendo 28 de clubes da RFA e outros duas crias do futebol inglês. Uma curiosidade é que somente em 2010 os primeiros jogadores nascidos após a reunificação alemã vieram defender a seleção em jogos oficiais, sendo representados por Mario Götze e André Schürrle.
O Carl Jeiss Zena, um dos campeões da Oberliga, hoje briga para não cair na terceirona