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Casa grande e senzala: a questão racial no futebol brasileiro

Por Sofia Lucchesi

O sociológico pernambucano Gilberto Freyre, em seu livro Casa Grande e Senzala, atenta para os resquícios dos tempos da escravidão que ainda estão presentes em nossa sociedade. São inúmeros os casos de preconceito e injúria racial nos diversos âmbitos da vida pública. Se vivemos em uma sociedade ainda assombrada pela herança desse tempo, o futebol, tão presente na vida do brasileiro, não poderia ser diferente. O Jogo Limpo convidou o cientista social Rodrigo Eiras, mestrando em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), para uma pequena entrevista sobre os temas que permeiam sua pesquisa de mestrado, que se dedica a entender as manifestações racistas dentro do futebol e suas causas.

JOGO LIMPO Por que você decidiu pesquisar sobre esse tema?

 

O futebol é algo extremamente disseminado no Brasil. Mesmo quem não gosta de futebol, acaba sabendo sobre ele. Faz parte da nossa cultura, ele é um fato social. Existe a própria forma como a sociedade se organiza em torno disso - como, por exemplo, tem gente que evita sair de casa em dia de jogo -, e ele está muito presente na mídia. A partir desse entendimento da importância do futebol como fato social, comecei a perceber como o racismo está presente nele. Existe uma desigualdade da mídia e das torcidas no tratamento para com os jogadores brancos e os jogadores negros. Na mídia, o jogador negro é colocado de lado e existe a espera de um papel específico para o negro no futebol. Existe um padrão de perguntas pelos jornalistas para o jogador negro, são perguntas superficiais, evitando que sua opinião a respeito de outras questões mais complexas possa ser exposta.

 

JOGO LIMPO Como o racismo se manifesta no futebol?

 

O racismo se faz presente a partir da própria rivalidade dos times e dos perfil social dos torcedores. Por exemplo, em entrevista, Carlos Miguel Aidar, antigo presidente do São Paulo Futebol Clube, que quando perguntado porque gostaria de contratar Kaká, exaltou o fato do jogador ser “bonito, alfabetizado e ter todos os dentes na boca” e, por isso, representar bem a instituição do SPFC. Existe, nessa declaração, uma clara alusão aos Corinthianos, por causo do perfil social de sua torcida, ao mesmo tempo em que menospreza essas pessoas, a declaração também coloca o padrão branco como o ideal e o enaltece. Isso é muito presente na mídia. Em outras declarações, Miguel Aidar nega que tenha sido racista. Existe um racismo velado no Brasil. Ninguém se diz racista ou admite, há uma constante negação disso.

 

JOGO LIMPO Que outro caso midiático você citaria?

O caso que mais me inspirou a iniciar a pesquisa foi o do goleiro Aranha, que acusou os torcedores do grêmio de terem sido racistas [o caso aconteceu durante a Copa do Brasil de Futebol 2014, na partida entre Santos, time que Aranha jogava, e Grêmio]. Aranha foi chamado de “macaco” pela torcida do Grêmio. Xingar um jogador do time adversário é algo recorrente no futebol, e essa conduta não é discutida. O jogador negro, por ser constantemente silenciado, já ativa certo mecanismo de “autocensura”, ele não fala, mesmo quando é vítima de injúria racial. Há um racismo naturalizado não só no futebol, mas na nossa cultura, que constrói esses padrões de sociabilidade que são introjetados no negro - amplamente estimulado pela mídia e pela hostilidade dos torcedores. Quando alguém, como o Aranha, se manifesta contra esse comportamento, questionando essa hostilidade, quebra o padrão de sociabilidade e cria uma tensão.

 

Goleiro Aranha em momento de tensão com os repórteres, quando explicava a gravidade do caso. 

JOGO LIMPO De que forma esse padrão de sociabilidade é imposto?

Jessé de Souza [sociológico, autor do livro A Ralé] nos traz a perspectiva de como, no processo de socialização, os negros são induzidos a não terem um olhar crítico sobre a realidade. A maior parte dos negros está em escolas públicas e o incentivo ao estudo não acontece da mesma forma que para os brancos. As próprias crianças negras aprendem a desenvolver melhor atividades com o próprio corpo, que envolvam o físico. É como se a sociedade dissesse ao negro: “olha, você não tem capacidade de aprender o que está na escola, então é melhor você trabalhar com o seu corpo mesmo, como empregado doméstico, pedreiro ou como jogador”. Há algo que que volta o negro para o corpo, isso percebemos com a própria fetichização do corpo negro. Falar de racismo é falar disso e da própria sexualidade do negro. A prostituta negra, o negro de que tem um “pênis grande”, a globeleza e as “mulatas” do carnaval. É como se a identidade fosse colocada nesse caminho que atravessa a questão corpórea, excluindo os outros aspectos dessa identidade. A própria história negra é apagada, restando apenas a história da escravidão. Essa tipo de socialização do negro vem desde os tempos escravocratas até hoje. A sociedade não deposita expectativas de que o negro estude, que tome uma posição de alguém entendido ou bem-sucedido. Essa é uma expectativa que recai para o branco.

 

                                                                                        

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